domingo, 21 de junio de 2015

EUA acordam mal-assombrações históricas contra Eurásia


A Eurásia caminha para se tornar mais integrada do que jamais antes, com o Cinturão Econômico e a Rota da Seda chineses e a União Econômica Eurasiana patrocinada pela Rússia oferecendo a base estrutural para essa conexão histórica entre continentes. Os EUA compreendem a ameaça que daí advém para sua hegemonia (vide O Grande Tabuleiro de Xadrez de Brzezinski). E puseram a trabalhar sua mais recente arma pós-moderna: a militarização da memória histórica. 

A Eurásia é como uma colcha de retalhos de memórias conflituosas, mas nenhuma mais controversa, polarizadora e conveniente ao objetivo norte-americano de dividir a Eurásia que a 2ª Guerra Mundial e a divisão sunitas/xiitas. Examinemos mais de perto:

Ásia

Os EUA estão apoiando empenhadamente a remilitarização do Japão, sobretudo porque o tema faz encrespar os nervos da China e evoca memórias de um retorno ao passado fascista de Tóquio. A China perdeu dezenas de milhões de cidadãos por efeito da brutal agressão japonesa e na ocupação subsequente, e tem planos para homenagear a memória desses chineses durante o próximo 70º aniversário do Dia da Vitória na Ásia. Os EUA veem tudo isso como absolutamente desnecessário, segundo o principal conselheiro de Obama para a Ásia, Evan Medeiros, nos termos da transcrição de material que o Departamento de Estado fez chegar à Agência Reuters, segundo a qual Medeiros teria dito que:

“Queremos que toda a região supere tudo isso, para que a região possa realizar seu pleno potencial como motor do crescimento global, por exemplo. Assim, quando pensamos nessas questões históricas e quando pensamos sobre essa cerimônia na China... São ideias que gostaríamos de ver superadas.”

Calma lá! Os EUA estão dizendo que as vítimas de agressão patrocinada pelo estado, e o país que perdeu milhões de vida por causa daquela agressão, deveriam “superar” essas “ideias”? Bem, sim, é o que disse o homem, mas lembremos que os EUA são sempre muito consistentemente subjetivos na aplicação das políticas que eles mesmos inventam. Não fosse isso, como se entenderia que a abordagem seja absolutamente oposta àquela, no que tenha a ver com a mesma 2ª Guerra Mundial, mas na Europa Oriental? Mas antes de examinar isso, temos de examinar com mais detalhes a mesma militarização da memória histórica na Ásia.

Os EUA compreendem que o único modo factível de construírem alguma Coalizão para Conter a China [orig. China Containment Coalition (CCC)] é inflarem o envolvimento regional crescente do Japão, como seu procurador principal na operação de “Liderar pela Retaguarda” [orig. Lead From Behind] naquele específico teatro. 

A única ocasião em que Tóquio esteve no papel de hegemon regional foi durante a 2ª Guerra Mundial. E por mais que para alguns, inclusive a China, doa admitir, muitos dos povos da região sentiram-se certo alívio ao tombarem sob o controle japonês, porque qualquer coisa lhes parecia melhor que a colonização europeia (Indochina e Indonésia são os principais exemplos).

É verdade que houve grupos de resistência, sem dúvida, e os japoneses sem dúvida cometeram atrocidades em grande escala nas terras ocupadas, mas de modo geral não houve resistência contra o Japão, que se compare à resistência que os chineses impuseram. Os chineses literalmente combateram pela própria sobrevivência (assim como a União Soviética e seu povo combatiam pela sobrevivência deles, contra os nazistas). 

Por mais que se chamem de “colaboradores” do Japão, à maioria dos asiáticos não chineses na Ásia ocupada, ou que sejam acusados de aceitar passivamente a tirania de Tóquio, nada disso altera o fato de que o Japão ocupante encontrou considerável apoio entre a população, e esses apoiadores não se sentiram compelidos a levantar-se e iniciar algum tipo de resistência semelhante à chinesa.

É esse, precisamente, o estado de coisas que os EUA querem ‘reatualizar’ nesse século 21, com o Japão Imperial servindo de modelo para a Coligação para Conter a China no nordeste e sudeste da Ásia, exatamente como se viu durante a 2ª Guerra Mundial. 

Como se vê na declaração de Medeiros, a atitude oficial dos norte-americanos ante a crítica que os chineses têm feito contra a remilitarização do Japão e a clara adesão dos EUA àquele mesmo modelo da era fascista da história do Japão é que Pequim deveria “superar tudo isso” – o que é fácil de dizer, porque os EUA perderam fração mínima do que a China perdeu na 2ª Guerra Mundial. E os EUA nunca lutaram guerra dentro do próprio território por mais de 200 anos.[1]

Europa

Como os EUA reagem à invocação do criticismo dos tempos da 2ª Guerra Mundial, pelos seus aliados nacionalistas radicais do leste europeu? Será que já disseram a Kiev, à Polônia, aos Estados Bálticos, que tratem de ‘superar isso’ e cuidem de enterrar o passado fascista deles todos? 

Por que não teriam de simplesmente aceitar o fato histórico de que foram libertados pelo Exército Vermelho e agradecer à União Soviética que pôs fim à guerra? Nada disso! O que se vê é o exato oposto, como todos com certeza já sabem. 

No leste da Europa, os EUA também estão apoiando o renascimento de movimentos e de interpretações históricas da era do fascismo, precisamente como têm feito no leste da Ásia com o Japão, e também reagem furiosamente contra quem (sobretudo, a Rússia) que sugira que os EUA estão do lado errado da história, seguindo suas instáveis alianças neofascistas. 

Nesse teatro ocidental do tamanho da Eurásia onde cresce a tendência regressista estimulada pelos EUA, Washington não quer que ninguém, absolutamente, jamais “supere” a 2ª Guerra Mundial, exceto, claro, a Federação Russa e o período vitorioso da União Soviética. 

Exceto Moscou, o resto do mundo no Leste da Europa tem de manter a guerra no centro de todos os seus pensamentos e planos, mas só se se tratar da versão fascista da história da guerra que os EUA só superficialmente ‘desinfetaram’.

A versão da guerra que os EUA divulgam está longe de realmente desinfetada para o ser humano médio, mas para os EUA, que nunca se servem ou ensinam alguém a servir-se de princípios morais ou éticos ou legais na política exterior, (quaisquer referências aos itens acima citados, quando as há, são cortinas ‘marketadas’ para vender seja qual for a guerra da hora), é a única interpretação que se pode aceitar para os eventos da 2ª Guerra Mundial. De fato, os EUA prefeririam que tais ideias fossem promovidas, de interpretação, a ideologia regional, tudo para construir um ‘cordão sanitário’ no século 21 em torno da Federação Russa. 

Quanto mais subjetivamente (e em muitos casos, falsamente) os ‘fatos’ acima possam servir para separar Rússia e Europa, melhor; e dado que a Europa Oriental á a mais receptiva a essa guerra de informação, faz perfeito sentido que metade dos ‘centros de comunicação estratégica’ da OTAN estejam localizados naquela área. Pode-se dar por dado sabido e confirmado que essas entidades estão agora dedicadas a desenterrar toneladas de material revisionista da era da 2ª Guerra Mundial, numa campanha frenética para reescrever rapidamente a história aprovada pelos EUA para todos os eventos, e para ‘implantar’ a ‘memória’ desses eventos na mente das maiorias regionais. 

O que os EUA fazem hoje é obrar para replantar raízes de ódio intergeneracional contra a Rússia naquela parte do mundo. Assim, os EUA parecem sentir-se mais seguros de que seus vassalos regionais permanecerão sob seu controle nas décadas futuras.




Oriente Médio

Os planos dos EUA para estimular o crescimento de ódio intergeneracional contra a Rússia parecem pouca coisa, se comparados ao que os EUA estão fazendo no Oriente Médio, onde estão recriando o ódio entre seitas islamistas.

Embora a cisão entre sunitas e xiitas tenha acontecido há mais de mil anos, e o rápido período de guerras sangrentas que resultaram da cisão tivessem sido já, de pleno direito, relegados ao passado, os estrategistas dos EUA decidiram desenterrar essa memória amarga, para ajudar a promover a estratégia norte-americana contemporânea. 

A última coisa que os EUA desejam é que os muçulmanos “superem” suas divisões sectárias. Se em algum momento eles conseguiram superá-las (como, sim, conseguiram, por bem mais de mil anos), então é preciso imediatamente fazê-los relembrar todas as diferenças que, um dia, jogaram-nos num mesmo banho de sangue.

O conceito aqui é dividir para governar o Oriente Médio, mediante a militarização da divisão entre sunitas e xiitas, fazendo com que cada seita ponha-se a matar as demais simplesmente porque praticam ritos religiosos diferentes.

Aqui, o modelo que os EUA almejam implantar no Oriente Médio é guerra equivalente a Guerra dos 30 Anos na Europa, quando forças católicas e protestantes engalfinharam-se em guerra tão terrível que Oxford Bibliographies estima que 15-20% da população europeia pré-guerra estava morta ou ferida quando a guerra acabou: “a extensão da miséria e da destruição levadas a todos que experienciaram aquela guerra foi comparável, se não superior, às das duas guerras mundiais e à Peste Negra.”

No Oriente Médio, o objetivo dos EUA é criar tal vórtice de caos, que ele acabe por sugar também a Rússia e o Irã, graças à natureza expansionista de um movimento anti-Estado Islâmico. Esse Estado Islâmico, por sua vez nada é além de um crescimento ideológico metastático, viabilizado por meios militares.

O perigo desse ‘Estado Islâmico’ advém do fato de que pode recolher adeptos de qualquer ponto onde vivam muçulmanos, e a violência sectária animalesca que o EI exibe ao mundo é ideal para provocar os ataques reativos necessários para iniciar uma guerra entre sunitas e xiitas que inflame todo o Oriente Médio, precisamente o objetivo dos EUA. 

Passada essa conflagração catastrófica que os EUA esperam conseguir fazer acontecer (o pavio, infelizmente, já conseguiram acender), então se escreverá uma versão para o Oriente Médio de uma “Paz de Westphalia”, que pôs fim à guerra entre católicos e protestantes e iniciou a era dos estados-nação; e será escrita conforme interesse aos imperativos geopolíticos dos EUA. Pode-se prever que seja escrita na linha das propostas divisionistas e cartograficamente revisionistas de Ralph “Serviços de Limpeza Étnica” Peters, ou do New York Times em “Como cinco países podem virar 14”, ou alguma formação híbrida.

Recapitulação histórica

Nas sessões anteriores foram listadas muitas informações históricas, e parece necessário fazer uma rápida recapitulação histórica para pôr todos os detalhes no devido lugar de um quadro mais amplo. 

Os EUA estão tentando fazer reviver as divisões históricas da 2ª Guerra Mundial e a fissura entre sunitas e xiitas, para alcançar seu principal objetivo estratégico: dividir a Eurásia e impedir a integração de Rússia-China-Irã num supercontinente. 

O foco no fascismo para a Ásia visa a empoderar o agressor japonês como procurador preferido dos EUA (Liderando pela Retaguarda), e convencer os vizinhos da China a colaborar com o Japão, como fizeram no passado. A proposta desse tipo de relacionamento está antecipada para formar a base de uma proto-OTAN no Leste e Sudeste da Ásia, com o Japão operando como elo de conexão entre os dois teatros de contenção.

Na Europa Oriental as coisas são um pouco diferentes. Os EUA celebram governos e movimentos fascistas colaboracionistas que lutaram contra a URSS na campanha antiesfacelamento, na esperança de que isso faça surgir obstáculos entre os cidadãos e o impulso pragmático de cooperarem com a Rússia. O efeito final dessa estratégia é fortalecer o comprometimento das populações com a OTAN, a ponto de, um dia, as populações realmente convidarem os EUA a aprofundar a ocupação de seus territórios, como já se vê acontecer nos países do Báltico e na Polônia. 

A Ucrânia é o experimento epistemológico do qual depende o futuro de outras aventuras europeias dos EUA nesse campo; até aqui, essa tática tem sido retumbante sucesso na linha de gerar sentimentos anti-Rússia na Europa, que já invadem a periferia da Europa, Escandinávia e Europa Ocidental.

Se se anda para a parte sul-centro da Eurásia, não se trata de reviver divisões da 2ª Guerra Mundial, mas divisões religiosas velhas de mais de um milênio. Os EUA querem dividir e governar toda a região, na esperança de que a guerra sectária que deseja lançar completará o serviço sujo do Pentágono. 

O jogo consiste em inflar o poder da Arábia Saudita, verdadeiro caldeirão de ódio sectário, de tal modo que o Reino torne-se o cerne de uma OTAN-Árabe (coligada com Israel) para ataque futuro ao Irã. Para complementar, a virulenta expansão de um “Estado Islâmico” visa a minar a estabilidade regional (e talvez algum dia também a estabilidade interna) do Irã – além de gerar um dilema para os estados da Ásia Central que são a base da segurança russa e chinesa.

Uma insurgência islamista de grande escala desencadeada no coração da Ásia com certeza respingaria sobre os dois gigantes eurasianos, forçando-os à posição defensiva e reabrindo a Caixa de Pandora da desestabilização doméstica.

À guisa de conclusão

Os EUA estão fazendo experiência com novo método de guerra, no esforço para conter e desmembrar Rússia, China e Irã: a militarização da memória histórica. A 2ª Guerra Mundial foi reinterpretada de tal modo que passa a ser usada como arma contra Rússia e China; e a cisão sunitas/xiitas, que se manteve dormente e pacificada por mais de mil anos, foi novamente despertada com vigor religioso militante jamais visto desde as Cruzadas. 

Cada teatro e cada reinterpretação da história orienta-se contra um diferente pilar de sustentação da Eurásia, mas o padrão de guerra pós-moderna é bem claro. 

Ao mesmo tempo em que os EUA continuam a confrontar de modo direto os adversários identificados, estão agora tentando acelerar também suas estratégicas indiretas, vale dizer, a invocação de memórias históricas de cisões, novamente militarizadas, tentando criar amplas coalizões contra seus rivais (pressupostos). 

Os fatos históricos estabelecidos já não interessam aos EUA – pode-se até dizer que jamais, de fato, interessaram muito. – Mas o que agora tem importância para os EUA é se seus públicos-alvo permanecem receptivos à história revisada ou não. Fato é, e pode-se ver com os próprios olhos, que os EUA estão conseguindo fazer rebrotar essas sementes de ódio e discórdia histórica. Até já começam a colher os seus primeiros frutos envenenados.


Artìculo escrito por Andrew Korybko, The Vineyard of the Saker 

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